Por José Augusto Caldas “Arreba” (2013)

Para o garoto Jac, desde muito pequeno, na tenra idade, a coisa que achava mais sensacional do mundo, e que absorvia grande parte do seu tempo em observações, era o voo; independentemente de ser de ave, de morcego (o mamífero que mais admirava), das borboletas ou do homem. Para Jac, voar deveria ser a sensação mais sublime que existe.

O que mais o alegrava era sonhar voando, sentir aquela sensação de liberdade, mas não gostava de sonhar com aviões, geralmente eram sonhos sombrios, que o deixavam com medo. Os aviões são interessantes, mas possuem muita estrutura pesada, usam motor, barulhento e poluidor. Para ele, voar de avião não era voar de verdade.

Seus brinquedos preferidos eram geralmente voadores: pequenos planadores de plástico, hélices, bonecos pendurados em paraquedas, pequenos ornitópteros, bumerangues, além dos famosos aviõezinhos de papel que ele mesmo confeccionava. Mas não quaisquer aviões de papel, os seus possuíam estabilizadores, flaps, ailerons, leme de cauda, lemes de profundidade, alguns possuíam até trem de pouso. Jac se considerava um verdadeiro engenheiro aeronáutico nesses artefatos. Por incrível que pareça, não soltava pipas, não só porque achava perigoso (eles podem se enroscar nos fios de alta tensão) como porque sabia que não era um bom “piloto” nesse tipo de “equipamento” e os outros meninos sempre cortavam sua linha. 

E por falar em equipamento de voo, de todos os criados pelo homem, o que sempre achou mais interessante é o Paraglider, ou Parapente. Com ele, dependendo do vento, pode-se levantar voo até do chão, sem motor ou estrutura rígida, o que deve aumentar a sensação de um voo natural. 

Nunca admirou passarinho preso em gaiola. Achava um desperdício um ser que teve o privilégio de ter nascido com asas para voar ficar preso sem poder usá-las. Costumava perguntar à sua mãe: “Por que eu não nasci com asas?” Era uma grande frustração para ele não ter nascido com asas. 

Admirava o personagem João Gibão, um homem alado da novela Saramandaia, do escritor autor Dias Gomes, repleta de realismo fantástico, nos idos da década de 1970; e a protagonista do filme Mary Poppins, que voava com um guarda-chuva. Essas personagens foram inspiração para a sua imaginação voadora que o levou a cometer atos um tanto quanto bizarros.

Certa vez, então com onze anos, cansado de ficar imaginando e teorizando sobre a ação de voar, resolveu transformar essa, para ele, possibilidade, em realidade. Sendo assim, idealizou e logo procurou pôr em prática um projeto de construção de asas, a exemplo de Dédalo, pai de Ícaro da mitologia grega, ambos já velhos conhecidos dele. O desenho do projeto se configurava de uma armação de madeira com correias e articulações nos devido lugares para a movimentação realística das asas, bem no estilo ornitóptero. As asas seriam afiveladas às suas costas por intermédio das correias. Para tanto, seria necessário o preenchimento do artefato com penas. Ele tinha bons conhecimentos sobre penas, pois também já havia estudado muito a respeito do voo das aves. Decidiu que as penas deveriam ser de urubu, não só porque achava que essa ave tinha um dos voos mais belos da natureza, mas também porque, na sua concepção, essas penas eram grandes e fortes e, em grande quantidade, seriam suficientes para sustentar o seu peso e manter o voo. Será? Faltava conseguir esse material. 

Nas férias escolares de fim de ano, sua mãe resolveu viajar para a casa da filha que morava no litoral, levando Jac. Estando lá, nosso herói saía para andar na praia e, num desses passeios, descobriu um mercado de peixes que ficava próximo a um atracadouro e que receptava dos pescadores e vendia os peixes que eram pescados diariamente. As vísceras e cabeças do pescado eram jogadas num terreno de praia atrás desse pequeno porto. Esse terreno estava sempre infestado de urubus devido à fartura de alimento para eles. Foi aí que Jac teve a brilhante ideia de recolher as penas que ficavam no chão e guardá-las em sacos de papel com a intenção de levar à sua casa na capital, onde vivia. Para tanto, saia correndo, fazendo a maior algazarra entre as aves carniceiras que voavam em debandada deixando cair ao chão suas penas. Assim o fez por vários dias e as penas eram recolhidas pelo pretenso aeronauta para futura utilização. Encheu vários sacos de papel com centenas de penas. Chegou o dia de voltar para casa e Jac enfiou o fruto das pilhagens em sua mala, juntamente com suas roupas, às escondidas da mãe. Voltaram de ônibus.

Já em casa, tratou logo de esconder as penas num banheirinho externo quase sem uso que ficava na área dos fundos da casa. Um dia, sua mãe, ao precisar de um material de limpeza que ali ficava armazenado, sentiu um forte mau cheiro e procurou saber de onde vinha. Pensou que era um rato morto, mas, após a busca, acabou descobrindo as penas. Ficou preocupada e estarrecida com aquela visão macabra e pensou tratar-se de um trabalho de macumba feito por uma senhora que trabalhou na casa da família e que saiu brigada e ameaçando a patroa, já que era adepta desses cultos. A mãe contou ao marido sobre o que descobrira e a conversa tomou proporções alarmantes. O menino vendo toda a confusão que acabou causando, acabou abrindo o jogo e revelou suas pretensões. Resultado, sua mãe aplicou-lhe uns cascudos e, obviamente, jogou as penas ao lixo. Jac ficou transtornado ao se dar conta de que seu projeto estava arruinado. Seria o fim, a derrocada de seu eterno sonho. Mas, após alguns dias de melancolia, voltou a ter esperanças.

Não contente com o acontecido, Jac voltou a maquinar novas ideias e resolveu partir para um novo projeto alado. Desta vez, utilizaria estruturas que já estavam prontas: guarda-chuvas. Pôs-se a conversar consigo: 

– Se no filme Mary Poppins consegue voar com um guarda-chuva, que diria, eu, usando dois, um em cada braço? 

E foi com esse pensamento “deveras lógico” que o criativo garoto partiu para a sua empreitada. Sabia que o pai possuía vários guarda-chuvas, inclusive alguns já velhos, daqueles pretos e grandes, que ficavam pendurados pelo cabo atrás do guarda-roupa do dormitório do casal. Numa tarde na qual estava “quase” sozinho em casa, pegou dois dos guarda-chuvas, levou-os para a área dos fundos da casa e os armou. Depois de armados, com um alicate, cortou os cabos bem rentes às suas bases, dobrando as pequenas pontas que sobraram como se fossem ganchos, de modos que os guarda-chuvas ficariam armados, mas sem cabo. Aproveitou as tiras que cada um tinha para manter o pano devidamente alinhado quando fechados, atou um pedaço de barbante entre os dois a título de extensor para que o equipamento se ajustasse às suas costas, segurou-os como se fossem asas abertas e encaminhou-se à “rampa” de salto. O que chamo aqui de rampa de salto, na realidade, era o muro de uns três metros que separava sua casa da casa da vizinha. Utilizou-se de uma pequena escada de madeira para alcançar o topo e, já na posição de lançamento, voltou a conversar consigo mesmo, fazendo seus “cálculos” aerodinâmicos:

– Eu sou pequeno, magrinho e, portanto, bem leve; se no bater das “asas” sentir a força do empuxo é porque, com certeza, nas próximas batidas meu corpo se elevará e continuarei me elevando a cada batida. 

Ficou em pé sobre o muro, de asas abertas e se preparando física e psicologicamente para curtir o mundo visto lá do alto. A vizinha, dona Marina, ao ver aquela aberração e sabendo que o traquinas poderia se quebrar todo, gritou pelo nome da mãe dele (ela e a mãe do “menino de asas” costumavam se comunicar em voz alta, sem contato visual, tendo o muro como divisória): 

– Dona Helenaaaa, o Jac vai fazer uma loucura, corre logo pro quintal!

Ao ouvir tal alarde por parte da vizinha, Jac apressou-se em saltar e lançou-se ao ar. Antes de concluir a primeira batida de asas, já estava no chão. Foi um baque forte e ali ficou, sentindo a dor da pancada, imóvel e calado por alguns minutos. Sua mãe, que a essas alturas já estava a caminho da “base de lançamento”, quando alcançou o quintal e viu aquele amontoado de panos pretos e varetas quebradas e retorcidas, imaginou logo que o filho havia sofrido fraturas e escoriações, se estivesse vivo! Estava vivo, mas faltou pouco para o intrépido ficar cego; várias varetas ao se romperem passaram muito próximas de seus olhos, chegando a lhe arranhar o rosto. Na operação resgate, sua mãe desesperada dizia:

 – Jac, meu filho, você está bem? Diga alguma coisa!

Passados longuíssimos quinze ou vinte segundos, o monte de destroços de guarda-chuvas começa a se mover e, de lá debaixo, surge a cabeça com rosto arranhado e feições decepcionadas de Jac que balbuciou:

– Acho que estou bem, mãe. Mas… vou ter que refazer meus cálculos e fazer alguns reparos nas minhas asas!

Dona Helena, ao ouvir tal sandice, de súbito mudou suas reações e suas feições; foi de uma grande preocupação para uma grande ira e, após examinar o filho e certificar-se de que ele estava realmente bem, disse:

– Quer dizer que você está bem, né? 

– Tô.

– Não quebrou nada? 

– Acho que não, deixa eu ver – e ainda ajoelhado no chão, começou a rebolar, mexendo com vigor os braços e as pernas.

– Levanta!

Jac ergueu-se meio acabrunhado e temendo o que estava por vir.

– Pois tome!!! Croc!

A mãe, mais uma vez, aplicou-lhe um baita cascudo. Para completar, pegou suas “asas”, acabou de destruí-las e, a exemplo das penas de urubu, atirou-as ao lixo sob o olhar aflito e suplicante do filho. E gritava:

 – Você é louco? Quer se matar e quer me matar do coração também?! … e blá, blá, blá…

Anos depois dessas aventuras, Jac voou de avião algumas vezes, sentiu-se voando engaiolado. Continuou apregoando por muito tempo que só se sentiria satisfeito mesmo no dia que conseguisse “voar de verdade”. 

* * *

Hoje, Jac é agrimensor e sofre de acrofobia, o medo mórbido de alturas.

Ilustrações: Bira GF.

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