Ilustração do próprio autor

Motoradio

Por Evandro Ferreira

Totó estava na banqueta em frente ao bar, de onde podia ver o campo todo. Preferiu ficar por ali, em vez de se achegar à linha lateral porque o gesso o obrigava a manter a perna sempre esticada e, claro, porque ali também teria acesso facilitado à Três fazendas.

Além disso, mais do que manter seus olhos atentos no Onze Primos de um posto privilegiado, também podia escutar o Palmeiras no seu Motoradio vermelho com menos interrupção.

Só que aquele não era seu domingo de sorte.O Onze Primos estava perdendo e, ao mesmo tempo em que o locutor narrava a falha de Gilmar que resultou no gol de Pita, o primeiro do Flamengo, o Zezinho entrava no bar.

Zezinho era seu cunhado e, alguma vez, amigo, mas recentemente desafeto por causa do Motoradio que agora anunciava o gol de falta do Zico. A relação desses dois era cheia de idas e vindas, ora estavam em paz, ora sua incompatibilidade de gênios lhes assumia o controle e provocava uma guerra familiar.

A história resumida da confusão do Motoradio é que Totó o havia comprado há cerca de um ano antes deste dia que narro aqui. Pouco tempo depois, ainda mal estreado, Zezinho tomou o aparelho por empréstimo, mas sem previsão de devolução.

Há menos de um mês, cansado de esperar pela boa-fé de Zezinho, Totó foi à sua porta cobrá-lo pessoalmente. Como ele não estava, ou assim fingiu, o dono do rádio acabou falando com sua irmã que lhe garantiu que o marido o devolveria. 

Zezinho se sentiu humilhado com a cobrança. Ainda mais quando a história caiu na boca de outros familiares e vizinhos e mudou de proporção, causando um diz-que-me-disse que fez Zezinho parecer um vilão muito mais sinistro do que era de fato nessa história.

A vizinhança, isto é, a parentada toda e gente agregada passou a olhar ainda mais feio para Zezinho quando o Totó se acidentou e precisou engessar a perna. Como um homem podia ficar convalescente sem nem sequer seu rádio para passar o tempo?

Pressionado pelos olhos alheios, Zezinho finalmente devolveu o rádio, faltando as pilhas, mas acrescido de bons impropérios que conhecia e que à época talvez não fossem tão comuns como hoje são.

Apesar da confusão e da vizinhança escandalizada, o Motoradio vermelho retornou ao seu dono original.

Bom, voltando ao ponto, o jogo do Onze Primos já ia para os minutos finais e Totó agora estava completamente absorto na narração do início do segundo tempo daquele Flamengo e Palmeiras no rádio. 

No balcão, uma conversa de Zezinho e Ramiro, que já estava lá quando ele chegou, começou a ganhar ares de discussão.

Quase no mesmo momento em que árbitro Maurílio Santiago marcava um pênalti para o Flamengo, ouviu-se o som do primeiro tapa entre Zezinho e Ramiro. Dali em diante a confusão só ganhou forma.

Zezinho era mesmo o tipo brigador, valente, sobretudo com uma cana a mais. O tal Ramiro era quase um espelho de Zezinho. Também era pai de família e morava na região, e igualmente gostava de cana e confusão.

Assim, a dupla rolou pelo chão de terra batida do coberto do bar e caiu para a rua. Zezinho batia melhor, era mais forte que Ramiro, mas este não arregava não. E Totó continuava no seu canto, indiferente à confusão e ouvindo a narração do segundo gol do Zico.

No meio da poeira levantada pelos dois homens que se batiam e pelos pés vacilantes dos que queriam sem querer apartar, um esguicho de sangue marcou a terra e sujou o sapato de um que estava ali. Ramiro esfaqueara Zezinho.

Os que foram separar se afastaram por instinto, Zezinho tentou correr, mas caiu, e Ramiro, tomado por ódio que se lhe escapava pelos olhos e pelas narinas dilatadas, partiu para matar e, sim, teria matado se não tivesse desmaiado.

Quando sentiu seu intestino nas mãos, Zezinho achou que estava pronto para morrer e meio que começou a encomendar a própria alma quando viu o olhar de Ramiro, e pensou que era milagre quando o seu algoz desmaiou na sua frente.

Pode até ter sido um milagre oportuno, mas o santo tem nome. No meio da confusão, quando percebeu que era sério e que Ramiro mataria o cunhado, Totó, pulando em uma perna só, sacrificou o seu Motoradio vermelho dando com ele na cabeça do pretenso assassino.

Os feridos foram socorridos e sobreviveram e cada um seguiu sua vida sem jamais lembrar que o outro existia. Intimamente Zezinho sabia que tinha uma dívida com Totó, mas jamais deu o braço a torcer.

O Motoradio não sobreviveu à confusão e Totó só soube que o Palmeiras perdeu de seis a dois quando viu os Gols do Fantástico na TV da sala de espera da Santa Casa de Misericórdia.

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