Crônica natalina
Por Evandro Ferreira
Fico pensando em quantas pessoas a palavra Natal é um gatilho, como é para mim. Penso isso, pois, tendo sido criança durante um dos piores momentos econômicos do país, era muito difícil esbarrar com o espírito natalino que os desenhos e os filmes mostravam na tevê.
No bairro, é verdade, tinha gente em situação bem pior que a nossa. Não me lembro de fome, apenas de alguma escassez. Presente? Só quando o pai trabalhou em uma empresa “boa” (uma que me dava carrinhos enquanto lhe roubava a saúde).
Tinha parente e vizinho de monte para comer o “risoto” da mãe, que era um monte de arroz com legumes e um frango desfiado para render. Era gostoso.
Tinha coca-cola e guaraná brahma ks (em pelo menos um Natal) para as crianças e Kaiser (esfriada no balde de água), Cavalinho e Três Fazendas para os adultos (isso era todo Natal).
Tinha rojão de todo tipo e de vez em quando um fogueteiro machucado – o Militão quase ficou sem os dedos com um morteiro. Teve sorte.
A gente até tinha um pouco, mas tinha muita gente no bairro que simplesmente não tinha. E eu me lembro de me entristecer por eles, de rezar por eles e era só isso que se podia fazer.
O Natal sempre vem com as imagens do Papai Noel, mas a gente dali sempre foi ensinado que era mentira que existia. Imagina minha cara de dúvida quando o Shopping Center Norte cantava que ele “existe mesmo e mora lá”.
Eu não acreditava nem que existia o Shopping Center Norte!
Eu só conhecia um Papai Noel e é esse o principal gatilho que essa época dispara em mim.
Eu nunca soube o nome dele, que sempre foi o Papai Noel.
Era um senhorzinho pequeno, com porte de maratonista, de olhos grandes, cabelos e barba compridos e branquinhos na maior parte, mas amarelados de nicotina ao redor da boca, que trazia um sorriso desfalcado, mas bonachão.
No resto do ano ele andava vendendo quebra-queixo pela cidade, mas, em dezembro, como um super-herói, ele punha sua roupa vermelha, avermelhava as bochechas com alguma tinta e andava o bairro todo rodeado de crianças para as quais distribuía balas! Era isso.
Podia acabar aqui, mas tenho duas memórias específicas sobre ele que valem ser registradas.
No ano em que o pai adoeceu, a coisa ficou feia em casa. Ele não podia trabalhar e só meus irmãos mais velhos é que tinham alguma renda. Tudo era contado e tudo faltava.
De novo, não me lembro de ter passado fome, mas me lembro que era tudo sempre pouco. Onde o Papai Noel aparece? No café da manhã. E não era Natal.
Havia muito tempo que a mãe não me mandava à padaria comprar os essenciais dez pãezinhos (tão essenciais que eu faço a mesma compra assim até hoje), e ela estava improvisando de tudo para gente comer de manhã.
Certo dia, o velho Noel, no seu alter ego vendedor de quebra-queixo, passou pelo quintal de casa com um saco de rafia, entupido de pães velhos que, sabe-se lá onde, ele conseguira. Separou vários pães, de vários tipos e os entregou à mãe.
Lembro bem que alguns que não couberam nos braços da mãe ele pôs no chão mesmo, sem cerimônia. Esses eram pães doces, daqueles com cobertura e cereja vermelha em cima e deliciosos como nenhum outro que eu provei depois.
Depois, ele sorriu e se foi, feliz da vida.
A segunda memória está mais perto do Natal. O pai tinha se restabelecido e tinha se tornado vereador. Assim, a nossa situação era infinitamente melhor do que jamais fora, mas mesmo assim, não estávamos lá tão estáveis.
O Papai Noel entrou no escritório do pai, já aos prantos dizendo: Pelo amor de Deus, seu Dito. Me compra um tacho novo? Quando eu puder eu acerto com o senhor. O meu furou e não tenho como fazer o quebra-queixo. Não vou ter como comprar balinhas para as crianças!
O Pai lhe comprou um tacho e as balas para aquele Natal.
Um feliz natal aguamolense!