Contos

Imóvel

Por José Augusto Caldas “Arreba” (2013)

Era uma casa antiga, já velha, de aspecto deteriorado que havia resistido em pé desde o início do século XX. Há anos apresentava vários problemas estruturais: de parte elétrica, de sustentação, de vazamentos, de infiltrações, etc. Necessitava urgentemente de uma severa reforma e manutenção que há décadas não ocorria. Era um típico caso de tragédia anunciada.

* * *

Quando deu por si, estava inerte, deitado de barriga para cima, sob muitas toneladas de escombros. Procurava atinar no que havia acontecido, os seus pensamentos estavam ainda embaralhados, tentava definir alguma coisa naquele escuro sepulcral. A última coisa que vem à mente foi ter ouvido algo rangendo alto e assustadoramente, um forte tremor, e tudo se apagou. Sentia dores na cabeça, nas pernas e braços. 

Procurava colocar as ideias no lugar “voltando a fita” do que havia acontecido em sua vida nos últimos momentos antes do desastre. Tratou de mover-se e viu que não conseguia, estava preso sobre coisas pesadas, que aparentemente pareciam vigas de madeira ou alvenaria. Suas pernas e seu peito estavam imobilizados sob o peso de algo volumoso; toda a parte superior do corpo sem movimentos; só conseguia mover a cabeça e girou os olhos para visualizar ao redor. Estava difícil de respirar. Aos poucos suas vistas foram se adaptando ao ambiente escuro, ou melhor, a uma penumbra – a luz externa penetrava por minúsculas frestas. Começou a distinguir vultos e silhuetas de objetos caídos, muito entulho ao alcance da visão. Não entendia ainda como estava vivo. 

Passou a imaginar o que havia acontecido e percebeu que poderia ficar ali por muito tempo até que alguém descobrisse em que lugar, do que outrora foi uma casa, ele estava. 

* * *

Morava sozinho; os irmãos estavam todos casados e morando com suas respectivas famílias. Ele foi o único que ficou solteiro vivendo com os pais já idosos; quando eles morreram a casa ficou aos seus cuidados. 

Lembrou-se do que lhe disseram alguns parentes e amigos a respeito de fazer uma reforma na velha construção. Os irmãos não se importavam com ela fisicamente, preocupavam-se somente com a parte que cabia a cada um quando de sua venda – era a partilha da herança que lhes importava.  Porém, para que houvesse partilha, era preciso que vendessem a casa, e para vendê-la por um bom preço, que ao menos compensasse a partilha, seria necessária uma boa reforma antes, mas ninguém se mobilizava ou cotizava para esse fim. 

De qualquer forma, o nosso amigo soterrado se opunha à venda daquele bem que era a menina dos olhos dos pais, patrimônio da família há gerações. Um dos motivos para que ele não se empenhasse na reforma era porque sabia que, concluída a obra, os irmãos tratariam de acelerar o processo de venda da casa. 

Devia ter dado ouvido aos que lhe alertaram, mas não: ficou procrastinando. Sabia que poderia gastar na reforma muito dinheiro que, na verdade, não tinha. E que tal obra daria uma dor de cabeça danada, seria dispendioso demais em todos os sentidos. Sem contar que os irmãos não se dispunham a ajudar. Então preferia gastar o dinheiro em outras coisas que, para ele, eram mais importantes. Mas o que seria mais importante do que a reforma de uma casa que já estava literalmente caindo aos pedaços sobre sua cabeça? Bem, resumindo, quando se falava em reforma, a inércia de todos os envolvidos era total.

* * *

Jazia agora ali, imobilizado, imaginando que foi realmente um perfeito idiota em não levar a cabo aquilo que seria a salvação de sua vida. Por sinal, continuava matutando sobre como escapou da morte, como ainda estava vivo. 

Ao cair onde estava agora, o material que veio abaixo ficou acumulado de certa forma acima dele que formou uma espécie de cabana composta de vigas de madeira e forro do teto, com cerca de um metro e meio de altura, que o protegeu do que ainda viria e ali permaneceu encapsulado e a salvo. Ele receou que essa situação não perdurasse por muito tempo, talvez as vigas que o protegiam não aguentassem; em algum momento também poderia entrar em pânico e o pânico, naquelas condições, levá-lo-ia rapidamente à morte. 

Pensamentos drásticos pululavam em seu cérebro, afinal, estava soterrado sob uma montanha de escombros, no escuro, sentindo dores, talvez com braços e pernas quebrados, totalmente sem movimentos, possivelmente até tetraplégico. O ar estava ficando rarefeito e, consequentemente, sua respiração, ofegante; impossibilitado de gritar devido a algo que pesava sobre seu peito e sentindo a presença da morte rondando cada vez mais perto.

Como dizem, passou um filme de sua vida em sua cabeça, de tudo o que ele viveu com a família naquela morada, as alegrias, as tristezas, os ganhos, as perdas. Viu-se ainda menino correndo e brincando com os irmãos pelos corredores e no quintal; riu ao lembrar-se de Gouveia, o seu cachorro, do qual não se separava; recordou-se do beijo na primeira namorada, a sós, no quarto dos meninos; chorou ao se lembrar dos pais.

Sentiu que estava perdendo as forças, mas sabia que não poderia se entregar, teria de resistir, teria de juntar os últimos resquícios de energia que ainda lhe restavam. Não admitia estar nos seus últimos momentos. Não poderia ser verdade: ter a sorte de sobreviver a um desmoronamento, estar vivo sob um grande amontoado de destroços e acabar morrendo aos poucos e sozinho!

Ouviu vozes e latidos, um burburinho que vinha de fora, imaginou que havia pessoas com cachorros vasculhando a área da ocorrência à sua procura, buscando um sinal de vida do solitário morador. Precisava alertá-los de que estava ali. Por alguns minutos, teve esperança de ser resgatado logo daquela tortura e ensaiou emitir algum ruído para que o ouvissem. Sua esperança virou ansiedade. Sua ansiedade acelerou seu metabolismo na aflição para agarrar-se à vida. A ansiedade se transformou rapidamente em agonia, ficou cada vez mais ofegante, sentia o bafo quente e sufocante da morte se aproximando de seu rosto. 

Precisava gritar e sinalizar a todos que estava ali, mas ouviu os alaridos se tornando cada vez mais longínquos: ou já era muito tarde e as pessoas haviam desistido de encontrá-lo vivo, ou ele já estaria entrando num processo de letargia, perdendo totalmente suas forças e a consciência, a audição se esvaindo e ele se entregando à morte. Aparentemente, arrefeceu decepcionado.

Logo voltou a agitar-se. O momento do pânico havia chegado mais rápido do que imaginou: de um segundo para o outro, seu coração acelerou ainda mais violentamente. Sua respiração foi a mil, ficou agoniado, passou a suar abundantemente, buscou se contorcer, revirar-se, mexer os braços e as pernas, mas os membros não respondiam aos seus comandos. Esmoreceu, extenuado e ofegante.

Voltou a ouvir vozes e ruídos e novamente veio a enorme vontade de lutar pela vida. A vontade se transformou em força e esta o impelia à sobrevivência. Fechou os olhos e os punhos bem apertados. Juntou todos os fragmentos de força que ainda tinha, apertou bem os olhos, contorceu-se bruscamente e conseguiu derrubar de lado o objeto que estava sobre o seu peito e que o impedia de gritar.

Ainda percebendo os movimentos e ouvindo vozes que vinham do exterior, de súbito, num forte empuxo instintivo e automático, soltando um ganido abafado, conseguiu erguer o tronco e ficou sentado. 

* * *

Suado e ofegante, abriu repentinamente os olhos e viu os raios de sol daquela bela manhã passando timidamente por entre as frestas da cortina que encobria a janela do seu quarto. 

_ Ufffaaa!…

E sua velha casa ainda estava de pé.

Ilustração: Bira GF.

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2 comentários

  1. Deise says:

    Muito bom!

    1. Valeu, Deise! Desculpa a demora pra responder, o tempo tá apertado! Abraço!

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